O que é que ele tem?
Compartilho
aqui um texto simples e, ao mesmo tempo, carregado de significados para
quem vive e trabalha com deficiência. Quem escreve é o Gregório Duvivier do Porta dos Fundos.
O João era uma criança normal. Pra mim e pras minhas irmãs, não tinha
nada de errado com ele, tirando o fato de que ele tomava remédios todo
dia e se submetia regularmente a cirurgias que abriam seu crânio. Suas
mãos eram diferentes, mas a gente achava que seus dedos todos juntos
deviam servir para nadar melhor ou agarrar bolas no futebol. João não
tinha olfato, mas isso era uma grande vantagem quando um dos irmãos
soltava um pum. Em vários sentidos, João era um super-herói: pulava da
cama às seis da manhã pra remar na baía de Guanabara, sabia de cor todas
as linhas de ônibus e seus trajetos, comia mais que todos nós juntos –e
não engordava. Nunca ouvi, lá em casa, a palavra deficiência. Ouvíamos
muito a palavra diferença, foneticamente tão parecida mas semanticamente
tão distante.
FONTE: deficienciafisicaucsal.blogspot.com |
Foi na rua que percebi que meu irmão era "deficiente". Achava
estranhíssimo quando os outros achavam o João estranhíssimo. Foi só
depois de me perguntarem uma dúzia de vezes "o que é que ele tem?" que
fui perguntar à minha mãe: "O que é que ele tem?".
Foi aí que aprendi a expressão Síndrome de Apert, para responder a todos
que me perguntavam. E as pessoas então ficavam mais calmas, mesmo sem
fazer ideia do que aquilo significava, porque agora tinham um nome.
Claro que não bastava. Depois precisava explicar também que não era
contagioso, que as outras crianças podiam brincar e abraçar, que elas
não precisavam fugir ou se esconder, que o João não mordia. Às vezes,
nem assim funcionava. Foi aí que conheci a outrofobia, essa doença tão
entranhada e tão difícil de desentranhar.
Essa semana minha mãe lança "O que É que Ele Tem?", que é a história do
João, e que é também a história dela, que teve o João aos 22 anos –e
enfrentou as barras mais pesadas antes e depois disso. Mas pode ficar
tranquilo: se você acha que vai encontrar no livro lamúrias e
autopiedade, você não conhece a minha mãe. Se você quer uma história de
superação, desista –porque no começo ela já deixa claro que no fim tudo
dá certo. Até porque no começo também dá –quando se começa cercado de
amor por todos os lados. Chorava do começo ao fim do livro. Não de
tristeza, mas de admiração.
Aprendi com a minha mãe o contrário do que os pais costumam ensinar aos
filhos: a apostar no amor em detrimento de qualquer coisa. Não em
qualquer amor, mas no amor mais difícil, e no mais raro, que é o amor
pela diferença. Não confundir com deficiência.
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